Tudo pela ciência, ilustração de Walt
Disney.
ADAPTAÇÕES SEM LIMITES
de Ladyce West
Na minha adolescência, eu sempre me encabulava de ser vista no carro de
meu pai. Só convidava minhas amigas para uma carona, se me visse
forçada. Tinha receio do que poderia revelar a meu respeito ou a respeito
de meu pai.
Nosso carro era um híbrido pode-se dizer de um tanque da Segunda
Guerra Mundial com um carro passeio. Combinação possível graças ao gênio
inventivo de meu pai, um cientista. Esse ornitorrinco do mundo dos carros
poderia ter sido encontrado numa história em quadrinhos de ficção
científica. Meu pai foi um típico homem dedicado à ciência, cujo
abundante e rebelde cabelo grisalho espelhava suas ruminações. Sua
notória falta de atenção era conseqüência de uma mente em ebulição, resolvendo
problemas diversos, enquanto seu carro, o nosso carro, era a prova concreta dos
princípios rudimentares dos testes científicos: nada funcionava de acordo com o procedimento padrão.
Originalmente o carro tinha sido um Standard Vanguard, cinza, uma criação britânica,
importada para o Brasil, e anunciada como sólido carro para a família.
Sua primeira cirurgia aconteceu quando mudaram o guidão do lado direito para o
lado esquerdo do motor. Não me lembro se papai foi responsável por esta
operação ou não, porque este carro substituiu o antigo Austin, quando eu ainda
não tinha cinco anos. Mas desde que me entendo por gente, papai trabalhou
para a melhoria dos padrões do Standard
Vanguard.
O processo acontecia na nossa garagem. Mesmo assim podíamos encontrar
peças de carro pela casa inteira, principalmente onde minha mãe não as queria.
Para falar com franqueza, na nossa casa, o domínio de meu pai era
restrito ao quarto da empregada, próximo à cozinha, cuja função havia se
tornado obsoleta, já que nossa cozinheira não dormia em casa. O quarto
tinha a vantagem de ter água corrente do banheiro vizinho, o que para papai era
essencial, porque ali também era o seu laboratório. Meu pai era um
químico industrial que transformou sua crise de meia-idade numa pós-graduação
em física. Para ele, o laboratório era um modo de pensar, uma maneira de
viver.
O quarto, estúdio-biblioteca-laboratório, refletia sua
personalidade, sua mente inquisitiva. Com paredes cobertas do teto ao
chão por livros aparentava uma desordem de natureza orgânica. No
centro, mobiliário de metal onde cadinhos e tubos de ensaio competiam por
espaço com outros objetos na bancada de azulejos. Tudo ali resumia
preocupações antigas e atuais de papai: tanques de aquários vazios, coleções de
borboletas espetadas, microscópio, equipamento fotográfico, espécies de
sementes que poderiam ser usadas para alimentar gado, cobras e aranhas em
álcool e dúzias de reagentes químicos em garrafas de vidro com rótulos de
caveiras nos bojos.
Pensando bem, é impressionante que nosso único acidente tivesse sido um
pequeno incêndio causado por meu irmão Júlio, que, aos quatro anos, brincava
com fósforos, no seu quarto, longe da área de perigo. Porque a quantidade
de material explosivo, em potencial, que se estocava na nossa casa poderia
fazê-la ser isolada pela segurança pública com cartazes: AREA RESTRITA, caso
seu conteúdo viesse a ser descoberto pelas autoridades. Ainda que
nós crianças pudéssemos entrar e sair do “laboratório” ao bel prazer,
nenhum vizinho, conhecido ou amigo colocou os pés no quarto do papai.
Nunca!
Para desespero de minha mãe, papai era um tipo mais sociável do
que a maioria dos cientistas. Isso significa que suas ferramentas e
livros poderiam ser encontrados na mesa da sala de jantar – seu lugar favorito
de leitura; ou em frente da televisão – seu lugar favorito para uma
soneca. Sem perder qualquer oportunidade para nos ensinar alguma coisa,
ele adorava ficar rodeado pela família enquanto trabalhava. Mamãe queria
ver a casa livre de seus apetrechos e reclamava com freqüência. Mas
acabava aceitando um pouquinho de bagunça na casa toda. Mas havia uma
regra: nenhuma “parte de carro” dentro de casa. Se encontrasse alguma, um
grande rebuliço brotava pela casa. Isto ela não aceitava. “Todas essas peças cheias de graxa, estragando a minha mobília,
arranhando as tábuas do piso! Cláudio tire tudo isso daqui!” Lá pelas tantas, papai pegava uma chave inglesa, uma chave de fenda,
pistão, filtro, válvulas, farol e levava de fininho para o Lab.
Mas logo ignorava as regras. Por propósito ou negligência,
partes do carro nos cômodos internos da casa eram lugar comum. Nem ele, nem
minha mãe abriam mão de seus direitos e o confronto entre os dois era a
norma. Papai sempre começava trabalhando numa coisa pequenina – um ou
dois fios, uma chavinha de fenda, que vinha escondida no bolso. Estes
objetos vinham quietos, macambúzios e se instalavam timidamente sobre jornais
velhos num canto da mesa de jantar. No final da tarde, ou à noitinha, eram
algumas chaves de fenda, um ferro de soldar elétrico, algumas pinças que haviam
encontrado o caminho da sala e achado repouso num canto do tapete oriental
debaixo da mesa, quando não achavam acolhida ao lado da sopeira antiga na
cristaleira. E, como sempre, ao lado de papai, havia um de nós fazendo o
dever de casa ou brincando com pedacinhos de fios, desencapando-os. Todos
os nossos bonecos, lá em casa, eram ruivos: tinham belíssimas cabeleiras de
fios de cobre.
Papai sempre queria estar onde tudo acontecia. E ele
podia. Tinha um grande poder de concentração, uma característica herdada
por todos os três filhos. Uma característica que era também outro ponto
para mais discussões na nossa casa, porque mamãe, cansada de nos chamar para o
jantar ou para por a mesa, tinha que vir até nós, às vezes até sacudir nossos
braços, ou retirar de nossas mãos os livros ou brinquedos com que nos
divertíamos, para nos “acordar” para o mundo. Papai, é claro, era o pior
de nós todos. Não era raro ele se sentar à mesa do jantar quando nós já
estávamos na sobremesa. Mamãe o chamava. Mas depois de algum tempo
se calava e dizia: “precisamos esperar,
agora, que os sons do jantar cheguem até o inconsciente de seu pai e o lembrem
que o jantar está servido”. A surdez momentânea de papai
se tornava pior quando ele estava absorvido com o carro, quer na garagem, quer
no Lab.
No Lab havia uma parafernália enorme relacionada a carros: caixas
e caixas de parafusos de tamanhos diferentes, radiadores, caixa de transmissão,
carburadores, correias de ventilador, baterias e todo tipo de canos e peças de
metal e ferramentas. Mas o passatempo diário de papai – a melhoria do
carro da família — afetava a família muito além da localização das peças e
ferramentas por toda a casa. Afetava nossos horários, nossa imagem, nosso
orgulho e até mesmo a percepção que tínhamos de nós mesmos. O carro era o
grande ditador da nossa vida, o cardeal por trás do rei, a eminência parda do
nosso lar.
Foi a persistência de papai que nos levou a ter um carro com duas
baterias escondidas atrás do banco traseiro; um painel indicando através de
luzes diferentes o estado de diversas partes do motor e assentos removíveis
transformando a caminhonete num verdadeiro pequeno caminhão.
Enumerando as melhorias desta maneira elas até parecem muito boas. Mas
era a maneira como os fios eram dependurados pelo carro, vindos do guidão e
painel fronteiriço, passando por trás das portas, caindo como sanefas das
janelas que era um problema! É claro que as portas do carro já não tinham
acabamento. Tudo era visível: o mecanismo de abrir e fechar os vidros, os
fios vindos de trás, da frente, de lugares que não podíamos imaginar.
Tudo isto levava uns vinte minutos para ser ligado. Eram muitas
adaptações diferentes que precisavam esquentar antes de colocar o carro em
andamento. Havia é claro um termômetro no motor para manter a temperatura
ideal e garantir o melhor funcionamento da engenhoca. Tudo isso
contribuía para que ficássemos todos encabulados com o nosso carro.
O critério usado por papai para melhorias automobilísticas era
puramente pragmático. Seu carro era um experimento e estava sempre em
processo. Tudo era registrado para futuras adaptações. Quanto maior o
controle, melhores as soluções. A conseqüência era simples: o interior do
nosso carro tinha adaptações diversas de outras máquinas, de partes de outros
carros, de outros fabricantes. Sob as mãos mágicas de papai esta pilha de
ferro velho se transformava em tacômetros, botões de ligar e desligar luzes de
aviso, reguladores da temperatura da água, medidores de pressão de óleo,
medidores de pressão dos freios e de seu desgaste. Tudo permitia leituras
específicas sobre o carro. Papai anotava dados em grossos cadernos de capa
dura, às vezes até mesmo durante os trinta segundos de parada num sinal
vermelho. O carro tinha guidão da Mercedes, e partes do motor da
Volkswagen, carburadores de quatro velas e botão para ligar e desligar as
baterias que preveniam o roubo do carro. Grande defensor de medidas de
segurança, papai instalou cintos de couro para nós crianças no banco de
trás. Para ele, estes precursores dos modernos cintos de segurança não
tinham a aparência horrenda que lhes atribuíamos. Para papai, a diferença
entre um carro comum e o nosso era que o nosso era melhor!
Sem tomar conhecimento das reclamações estéticas feitas por mim e
mamãe sobre o interior do carro, papai incentivou uma guerra dos sexos na
família, encontrando apoio nos meus dois irmãos mais novos: David e
Júlio. Ambos eram freqüentemente mecânicos-auxiliares na garagem lá de
casa.
David se interessava por qualquer coisa que precisasse de
força. Ele gostava de músculos. Desde que nascera media suas forças
com as de papai e depois insatisfeito com os resultados ele passeava pela casa
comparando bíceps comigo, mamãe e Júlio. Às vezes até a vovó se deixava
medir nos músculos dos braços. Ele sempre sonhava que era Tarzan.
Suas tarefas na garagem envolviam equipamento pesado.
Júlio por outro lado se preparava para seguir nos passos de meu
pai. Metódico e dado a pesquisas, gastava horas no Lab afinando pontas de
parafusos para adaptá-los a este ou aquele uso, ou trabalhando com algo que
envolvesse eletricidade. A ele cabiam as tarefas detalhistas, o trabalho
cuidadoso. Melhor que ninguém na família, Júlio podia colocar ordem
em qualquer caos. Sua maneira sistemática de resolver problemas e sua aptidão
para organização eram sempre bem-vindas quando a tarefa envolvia fios para
serem desembaraçados, ou desfazer nós. Se paciência fosse um requisito da
situação, Júlio era chamado.
Eu nunca ajudava papai; tomava o partido de minha mãe. Mas
eu ficava furiosa quando papai dizia que “preocupações estéticas eram típicas
do sexo frágil”. Nem eu nem mamãe éramos contra o desenvolvimento da
ciência. Só não queríamos participar dos experimentos. Éramos
passivas e resistentes. Aprendemos a não ouvir qualquer dito, provérbio
ou frase sobre feminilidade, ainda que uma divisão dos sexos tivesse se formado
na nossa casa. De um lado, papai se recusando a ser normal.
Do outro lado, mamãe com crescente ódio pelo carro, chamando taxis, pegando
carona com minhas tias e me levando junto. O carro era vergonhoso para
nós duas. Tudo o que eu queria na minha adolescência era mostrar a mim
mesma e às minhas amigas que fazia parte de uma família bem normal.
Meus irmãos, mais jovens e ainda adolescentes imaturos encontraram
nas atividades de papai uma fonte de grande orgulho e felicidade. Eles
também gostavam do pequeno clube que faziam, separados de nós, e na verdade,
muito cedo, quando ainda eram bem criancinhas, eles já “dirigiam o carro” para
dentro e fora da garagem. Aprenderam também a estacioná-lo com
perfeição. E quando mamãe e eu dizíamos alguma coisa derrogatória a
respeito do carro ou deles estarem cegos por causa de seus amores pela máquina,
ouvíamos o refrão repetido: “Típica
preocupação de mulher”.
Por muito tempo nosso carro ficou quase intacto no lado de fora,
mas era uma cena de guerra por dentro, até que papai teve “o grande acidente”
quando o carro capotou três vezes até parar. Como era o único carro na
estrada naquela hora, ninguém mais se feriu. Papai, “salvo por milagre”, de acordo com mamãe e “protegido pelas minhas invenções” de acordo com ele, começou logo a
melhorar a carroceria contra futuros acidentes. O carro de calhambeque
passou a joça.
Mamãe perdeu a aposta que fez conosco, crianças, sobre a revisão
anual do estado. Ela tinha certeza de que o carro não passaria na
inspeção. Ela falava. E eu achava que via medo refletido nos olhos
de papai. Isso acontecia todos os anos e era a fonte de muitas conversas
aos segredinhos entre minha mãe e suas irmãs. Ouvíamos a constante
observação de que os “inspetores eram cegos”. O que mamãe esquecia era
que meu pai se dava ao trabalho de maquiar o carro nas semanas anteriores ao
ritual anual. Com ajuda de meus irmãos, papai, numa única vez ao
ano, se mostrava preocupado com a aparência do carro e o carro saía da garagem,
no dia da inspeção, tinindo de beleza, como se uma fada tivesse trabalhado a
noite toda, como se os inspetores fossem mulheres. Fios desapareciam,
seguradores de portas e alavancas de abrir e fechar os vidros
reapareciam. O acabamento nas portas e no teto do carro surgia do nada e
estava sempre limpinho, porque afinal não havia sido usado por um ano
inteiro! E o carro, passou na inspeção ano após ano. Mas logo
depois de voltar para casa começava a pegar aquele ar de abandono que lhe era
peculiar o ano todo.
Tivemos este carro por toda minha adolescência. Menti para
amigos muitas vezes para evitar sua companhia em nosso carro. Com a
desculpa de que o carro era muito pesado para uma mulher frágil, aprendi
a dirigir numa escola de motorista do bairro e nunca dirigi o Vanguard.
David, no entanto, aprendeu a dirigir no carro da família.
Chegou a levar a namorada algumas vezes para uma volta pela cidade. Mas
logo, logo, notou que Lúcia, ou Diana, ou até mesmo Márcia, não apreciavam
muito aquela moldura para seus passeios românticos. Quer dizer, suas
namoradas não estavam interessadas no motor. Só no carro, e por causa da
aparência, não conseguiam apreciar o passeio. Nessa hora eu e mamãe
ganhamos um importante aliado, do sexo certo. David se juntou a nós nos pedidos
para trocarmos de carro. Papai agora contava só com Júlio, que com treze
anos, começava a se preocupar com as garotas. Depois de um segundo
acidente de carro, papai foi finalmente convencido a desistir do velho auto.
Quando foi vendido, pouco restava de suas peças originais.
Foi vendido, sem qualquer dos inventos de papai, para um ferro-velho. Os
mecanismos extras foram guardados nas prateleiras mais altas do Lab. II.
Uma casinhola construída no fundo do quintal. A família tinha um carro
novo. Novo em folha. Vermelho. Lindo. Brigávamos para
dirigi-lo. Permutas criativas eram feitas. A troca de
responsabilidades na casa tornou-se moeda corrente, espertamente usada, para
dissuadir alguém de usar o carro em qualquer noite. Eventualmente, papai
comprou outro carro, este de segunda mão, para nós, filhos dividirmos quando
não pudéssemos usar o novo carro. Nós adoramos a solução. Até que
nos preocupamos quando papai teve a idéia de colocar uma segunda bateria no
carro. E o fez. Mas, por algum motivo, seu amor aos motores, à
mecânica parecia ter desaparecido. Não pensava em adicionar nada mais.
Uma vez, quando lhe perguntaram a respeito, papai simplesmente respondeu
que oVanguard era diferente. “Aquele é que era um
carro de verdade. Esses carros novos, essas novas carrocerias não foram
construídas para durar. Não valia a pena o esforço”. Mentalmente agradeci aos novos padrões de fragilidade dos carros
modernos.
Em: Contos do Livro Errante, edição e organização de Cristiane Rose Duarte e Márcia Regina
Schwertner, Brasil, 2009, diversos autores, 104 páginas.
[Ficha catalográfica por Letícia Alves Vieira].